domingo, 29 de novembro de 2015

incandescente


É cedo e não tenho sono apesar de não ter dormido.
O dia está a prestes a nascer.
Tal como uma resistência que se incandesce depois do fio ligado à corrente, assim me contive até beber o primeiro shot, os seguintes perderam o número, o meu corpo iluminou-se até ao cérebro receber uma claridade que me permitiu ver tudo, até de olhos fechados as dimensões de quanto estava à distância das minhas mãos surgiam nítidas, palpáveis, evitáveis quando as arestas poderiam rasgar a carne do meu tronco.
Senti tudo.
Deixei que me tocassem para eu próprio sentir e admirar-me desse sentir.
As bocas foram passando pela minha lavando o álcool amargo das lembranças dos últimos dias e uma só vez recordei o nome dele, em memória dele, por ele, tal como ele, por que não ele? Ele faría o que fiz esta noite, a incandescência dos sentidos.
É cedo e dói-me o corpo, a alma, o dia queima-me até me sentir carvão.
Chove muito e as lágrimas confundem-me.
 
 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

requiem


Persigo-me.
Quero encontrar uma razão para nos termos afastado, tento achar-me a mudar de caminho ou a fechar a porta da minha casa.
Rio-me silenciosamente, talvez a porta da casa dele e nunca a minha, aqui não entra ninguém.
Talvez por isso não me encontre, talvez por isso a morte o tenha encontrado tão rápido e sem fazer malas ou avisos a amigos, levou-o.
Persigo noites sem dormir ou acordo transpirado de pesadelos que não consigo lembrar, culpo-o pela minha culpa.
É tão fácil.
Sempre foi tão fácil gostar dele, simples demais, talvez fosse o meu desencanto, o meu desassossego essa tranquilidade de mão no meu rosto quando dizia para não me preocupar. Não me preocupo, corro atrás de mim e não me apanho, nunca, nunca.
 
 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

era belo e vinha deitado


O choque do reencontro não está na distância do tempo, está nas circunstâncias do cenário, nas rugas que os panos afastados exibem ao expor a luz sobre a verdade.
Ali estava ele.
Entrava deitado, o caixão negro muito brilhante coroado de flores a descarnarem a sua fragilidade de ser humano irresistível ao apetite da vida, direi morte, múltiplas mortes exibidas nas caras fechadas dos que o acompanhavam.
Eu de saída com a minha mãe.
Onde é que nos tínhamos desencontrado não me lembro, perdi-me em conjecturas e apertos de caminhos, abraços e beijos, um filme que se passa quando se está à beira da morte e afinal ele fora-se sem me avisar, sem despedidas, nunca houve nenhuma e nem mesmo na vida dele, contaram-me os que me vierem esticar o aperto de mão contido, um abraço, dois beijos como se eu fosse família, o tempo não lhe deu a oportunidade de dizer é agora a despedida.
Disseram-me que ainda estava belo apesar da doença.
Era muito belo recordo-me. Mais belo quando se falava com ele.
Estou chocado porque me esqueci da beleza dele e agora todas as suas palavras se foram.
 
 

domingo, 1 de novembro de 2015

os mortos, os vivos e os desaparecidos


Quando era menino corria entre campas, às vezes um pé escapava-se e o medo do que me contavam levava-me de volta à minha mãe, serena, de olhos fechados numa oração junto à lápide do meu tio ou dos meus avós. Ela segurava-me pela manga e mandava-me ficar quieto, outras pessoas assustavam-me dizendo que os mortos me vinham buscar.
Hoje levo-a e ela mantém o mesmo ritual de prece, acrescentou outras visitas, eu não corro mas o sitio dá-me um frio pela espinha, lambo os verdes entre espaços das pedras brancas e cinzentas e os meus olhos só querem esquecer.
Também tenho alguns por aqui, gente que riu comigo e tinha calor nos abraços, agora não sei quem são sinceramente. Não lhes procuro onde se deitam, não quero saber, só espero o momento de saír e não me lembrar mais do dia.
Saímos de braço dado, passos pequenos como se o cansaço se montasse às cavalitas, um e outro suspiro dela, eu sufocado.
E foi quando o vi a entrar.