terça-feira, 8 de dezembro de 2015

não é comigo

 
Convenço-me que não o faz por mal, sempre meti na cabeça que não o faz deliberadamente, mas não consigo deixar de ter raiva ao som das primeiras palavras sobre o assunto.
Mantenho-me calado e distante.
Faço por fazer de conta que não é comigo.
Não é comigo. Será de outros, mas um sentimento de ódio aquece-me o peito, tenho vontade de lhe bater, depois tenho medo, tenho vontade de chorar, de fugir e de gritar e de acabar de uma vez por todas com isto.
Faço de conta que não me diz respeito, deixo-o dizer tudo, todas as barbaridades que estou acostumado a ouvir de todos os lados e que ignoro porque não é comigo, não é de mim que falam.
O meu pai vai levando todo o almoço deste bendito feriado com a mesma conversa. Entre cada garfada de alimento devora a sua nutrição pelo ódio que tem a estes que nunca deviam ter nascido porque só trazem desgraça aos pais. A minha mãe sorri, oferece a travessa, não sabe o que fazer.
Sinto-me cheio, peço licença e levanto-me.
E uma noiva, uma namorada, um neto, pergunta ele.
A mãe sorri e diz que ainda é cedo.
 
 

domingo, 29 de novembro de 2015

incandescente


É cedo e não tenho sono apesar de não ter dormido.
O dia está a prestes a nascer.
Tal como uma resistência que se incandesce depois do fio ligado à corrente, assim me contive até beber o primeiro shot, os seguintes perderam o número, o meu corpo iluminou-se até ao cérebro receber uma claridade que me permitiu ver tudo, até de olhos fechados as dimensões de quanto estava à distância das minhas mãos surgiam nítidas, palpáveis, evitáveis quando as arestas poderiam rasgar a carne do meu tronco.
Senti tudo.
Deixei que me tocassem para eu próprio sentir e admirar-me desse sentir.
As bocas foram passando pela minha lavando o álcool amargo das lembranças dos últimos dias e uma só vez recordei o nome dele, em memória dele, por ele, tal como ele, por que não ele? Ele faría o que fiz esta noite, a incandescência dos sentidos.
É cedo e dói-me o corpo, a alma, o dia queima-me até me sentir carvão.
Chove muito e as lágrimas confundem-me.
 
 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

requiem


Persigo-me.
Quero encontrar uma razão para nos termos afastado, tento achar-me a mudar de caminho ou a fechar a porta da minha casa.
Rio-me silenciosamente, talvez a porta da casa dele e nunca a minha, aqui não entra ninguém.
Talvez por isso não me encontre, talvez por isso a morte o tenha encontrado tão rápido e sem fazer malas ou avisos a amigos, levou-o.
Persigo noites sem dormir ou acordo transpirado de pesadelos que não consigo lembrar, culpo-o pela minha culpa.
É tão fácil.
Sempre foi tão fácil gostar dele, simples demais, talvez fosse o meu desencanto, o meu desassossego essa tranquilidade de mão no meu rosto quando dizia para não me preocupar. Não me preocupo, corro atrás de mim e não me apanho, nunca, nunca.
 
 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

era belo e vinha deitado


O choque do reencontro não está na distância do tempo, está nas circunstâncias do cenário, nas rugas que os panos afastados exibem ao expor a luz sobre a verdade.
Ali estava ele.
Entrava deitado, o caixão negro muito brilhante coroado de flores a descarnarem a sua fragilidade de ser humano irresistível ao apetite da vida, direi morte, múltiplas mortes exibidas nas caras fechadas dos que o acompanhavam.
Eu de saída com a minha mãe.
Onde é que nos tínhamos desencontrado não me lembro, perdi-me em conjecturas e apertos de caminhos, abraços e beijos, um filme que se passa quando se está à beira da morte e afinal ele fora-se sem me avisar, sem despedidas, nunca houve nenhuma e nem mesmo na vida dele, contaram-me os que me vierem esticar o aperto de mão contido, um abraço, dois beijos como se eu fosse família, o tempo não lhe deu a oportunidade de dizer é agora a despedida.
Disseram-me que ainda estava belo apesar da doença.
Era muito belo recordo-me. Mais belo quando se falava com ele.
Estou chocado porque me esqueci da beleza dele e agora todas as suas palavras se foram.
 
 

domingo, 1 de novembro de 2015

os mortos, os vivos e os desaparecidos


Quando era menino corria entre campas, às vezes um pé escapava-se e o medo do que me contavam levava-me de volta à minha mãe, serena, de olhos fechados numa oração junto à lápide do meu tio ou dos meus avós. Ela segurava-me pela manga e mandava-me ficar quieto, outras pessoas assustavam-me dizendo que os mortos me vinham buscar.
Hoje levo-a e ela mantém o mesmo ritual de prece, acrescentou outras visitas, eu não corro mas o sitio dá-me um frio pela espinha, lambo os verdes entre espaços das pedras brancas e cinzentas e os meus olhos só querem esquecer.
Também tenho alguns por aqui, gente que riu comigo e tinha calor nos abraços, agora não sei quem são sinceramente. Não lhes procuro onde se deitam, não quero saber, só espero o momento de saír e não me lembrar mais do dia.
Saímos de braço dado, passos pequenos como se o cansaço se montasse às cavalitas, um e outro suspiro dela, eu sufocado.
E foi quando o vi a entrar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

ressaca de um desejo


Comidas fora de horas é o que dá, noites desassossegadas, sonhos estúpidos, um despertar incomodado. Mais valia estar de ressaca, assim ressaco-me do que não tive o gozo de ter.
Despossuír.
Nem sequer sei se tal palavrão existe, mas vou-o martelando na minha cabeça ao ritmo da dor que me massacra, tomo uma aspirina e penso no estranho que me apareceu no pesadelo, um desconhecido encantador e tão semelhante ao mesmo que meteu conversa comigo na vida real, numa mesa de café e de quem fiquei à espera de um sinal.
Detesto-me por este tipo de infantilidades.
Detesto-me por me lembrar desse estranho com mais frequência do que é merecido.
Detesto-me por não o ter influenciado da mesma forma que ele me impressionou.
Despossuír.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

regresso

 
Conduzo no sentido inverso.
Tento concentrar-me na estrada e ao mesmo tempo as últimas 24h ocupam todo o meu cérebro focando a minha atenção para o estranho que se aproximou, sentou, meteu conversa.
Não me recordo que perguntas fez ou se fui eu que fiz ou se terei sido eu a dar inicio à tal conversa que tanto odeio e eis que me vejo no mesmo papel dos que aponto a dedo, feliz e inocente das perguntinhas curiosas.
Recta, o caminho até casa é escuro porque fiquei até às últimas e tive me impor a mim próprio a cumprir o que havia dito ao estranho. Parto amanhã. Hoje. Quando tinha pensado fazê-lo ontem se ele não se tivesse sentado na minha mesa.
Engano as horas do estomago e nem sequer paro para um café, uma água, faço o regresso a seco no rebobinar das horas ao contrário e levo a mão ao telemóvel à procura de recados de um estranho.
Estaciono.
O coração acelerado não liga a chaves fora da ignição.
 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

está ocupado?

 
Estou decidido a regressar, já tive o bastante de muda de ares e tenho saudades da minha casa.
Antes mesmo que peçam respondo que podem levar a cadeira, mas desta vez o homem pergunta se não incomoda se se sentar na minha mesa.
Avalio-o rapidamente, confesso que sou desconfiado naturalmente e não me agradam a proximidade de estranhos e a convivência destes comigo metendo conversa, mais ainda em tempo de férias, quero paz e sossego com os meus pensamentos, já é difícil só por si achar um local tranquilo para me sentar.
Passa no primeiro exame. Traz um jornal debaixo do braço, é mais velho que eu, nada de exuberâncias mas tudo roupa boa. (Quem disser que isto é materialismo, está a mentir; Todos nós nos analisamos pelo que vestimos).
De qualquer forma não vou ficar muito tempo, estico a mão num gesto de aceitação, ele senta-se e só então reparo na cor surpreendente dos seus olhos quando retira os óculos de sol, agradecendo-me.
Quero olhar outra vez e de novo mas não quero ser surpreendido a encará-lo.
 
 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

feios e bonitos

 
Muitos estrangeiros.
Muita gente bonita.
Muita gente feia que se acha bonita.
Muita gente que nem é bonita nem feia nem é nada, apenas consomem o ar e ocupam espaço, fazem muito ruído e chegam primeiro que todos a qualquer parte.
Sinceramente não sei o que faço aqui.
Em que grupo me incluo?
Não chego a lado algum, vou à praia e fico-me pelas esplanadas a tomar refrescos por detrás dos meus novos óculos escuros, o meu inglês dá para responder que podem levar a cadeira que está livre na minha mesa, penso no CD que deitei fora e arrependo-me de acto tão corajoso, ligo aos pais e digo que me estou a divertir imenso.
Logo devo ser um menino bonito.
 
 

terça-feira, 1 de setembro de 2015

quilómetros de pensar

 
Primeiro dia de férias e sigo viagem para Sul.
A estrada traz-me sempre memórias que não desejo.
Provavelmente porque acompanho a viagem com músicas que me recordam episódios de momentos que foram muito bons. Até se tornarem num bater de porta amargo e incompreensível.
Suponho que comigo sempre tudo há-se ser assim, maravilhoso de inicio, intenso e depois estupido.
A partir de certa altura deixei de investir no meu coração. Não vale a pena se já sei como vai acabar, melhor nem ter começo, melhor uma noite de copos e o flash encantador das luzes a disfarçar no som batido em altos decibéis as palavras que achamos que se dizem.
Não se dizem, mimetizam-se na ponta dos lábios, depois roubam-se beijos a esses mesmos lábios num qualquer recanto escuro, faz-se o resto da noite numa pensão barata onde ninguém conheça ninguém e está tudo bem.
Não percebo porque guardo estes CD's.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

evasão


Não sou corajoso.
Se fosse rompía comigo mesmo e nascia outra vez. Não emendava nada do que tenho feito até agora, simplesmente nascia de novo, puro, limpo, preparado para vir ao mundo sem medos.
Digo isto porque por vezes a táctica da fuga ou a evasão calculada é a melhor forma de evitar curiosidades de terceiros ou amargos de boca dificeis de explicar que quanto mais se estendem na informação mais complicados se tornam.
Ontem, regressado do almoço e à porta do edifício onde trabalho, acompanhado de colegas fui abordado por pessoa conhecida. Não do mundo do dia, do que me conhecem os que estavam comigo mas que ficaram expectantes perante o estranho que se aproximou de mim, estendeu a mão e com a outra agarrou também o braço, o ombro, falou perto do meu ouvido a sorrir, coisa de minutos a que eu respondi secamente.
Quem era, perguntou uma colega, mas eu não  respondi, as palavras do estranho atordoaram-me até à surdez.
Todo o almoço foi fora.
 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

mentira ou verdade, mentiras e verdades


Como abomino gente que vem cheia de energia no inicio da semana. Estou cheio de náuseas pelo que não devía ter feito no fim de semana, culpo-me na singularidade de pecador e penitente e atormenta-me a alegria dos que volteiam ao meu redor com exposições da sua vida privada, talvez esperem o meu troco de revelações mas a decepção é a única moeda que lhes posso oferecer: Fiquei em casa.
Não acreditam.
Nem devíam, pois é uma grande mentira mas há verdades que são mais criminosas que as mentiras.
Para mim, não para eles.
Como abomino mentiras e verdades, ficar em casa quando não deixei de ficar, ir ao céu quando agora estou no inferno.
 
 

sábado, 1 de agosto de 2015

madrugada

 
Desperdício.
Não perco tempo em conjecturas sobre sensibilidade e bom comportamento, houve esse lugar não me  lembro quando nem mais interessa, aqui não é o lugar deles, aqui não é o meu lugar, empresto-me por necessidade por isso tanto desperdício.
Aproveito, deixo que me aproveite ou que finja que gosto, gasto o que uso no bom uso do que escolhi, são trocadilhos de uma hora arrendada, até esqueço e deixo-me ir gostando à séria, o mal vem depois do muito bom e é nesse tempo que não devo perder a cabeça nos princípios.
Aqui é que bate, na zona do mal, no mastigar do desperdício a remoer o que poderia ter sido se. 
Leia-se a zona do mal, quando já confortado e de barriga cheia, passo o filme ao contrário e as golfadas do vómito vêm empestar a consciência.
Esqueci-me dos meus óculos de sol por lá. Ainda era noite quando saí, haviam homens a lavar as ruas, tive uma imensa vontade de lhes pedir para me lavarem também.

domingo, 26 de julho de 2015

domingos


Não há culpas.
Não há dedos apontados, nem divãs onde me tenha esticado durante 1h a tentar perceber o que se passa comigo. Nunca procurei respostas porque não tenho perguntas. Sou. Mas não posso ser. Se fosse, deixava de ser.
Revolto-me em certos momentos do dia por me permitir não ser quem sou verdadeiramente. Noutros, não penso nisso, limito-me a ser o que os outros acham quem sou. Sou considerado um bom homem.
Deixo assim.
Não há culpas, o almoço de Domingo é religioso, sou o que os olhos dos meus pais e da minha tia veêm. Nunca tentei desmistificar nada, contar fosse o que fosse. Agrada-me estar perto deles, sinto-me confortado entre eles. Até mesmo quando há perguntas e minto.
Sou um bom homem, um bom mentiroso.

 

quarta-feira, 15 de julho de 2015

teste


Once up on a time was a little boy lost on the woods...
 
O rapaz parece que só se perde a partir da noite, simbologia do bosque,  mas é fraca mentira, a começar pelo rapaz. As trevas tocaram-no cedo e agarrando noite e dia e dia e noite, não chega a haver um interruptor porque verdades dentro dele sempre estiveram acesas, vem a mão à luz da vela para esconder o alumiado não vá alguém aperceber-se. Já sabe que essa luz não é pura, um disfarce, é como o bosque que parece ter boas árvores para nos acolher ao piquenique mas afinal é tudo uma isca para arrastar ao pecado, por detrás do tronco é que são elas.
 
Devería eu ter sabido desde o inicio dos tempos como se descobre a parte de trás dos troncos das árvores, andei às voltas, ainda ando, tonto, tonto, vou-me deixar caír porque quero, é bom saber-me agoniado de andar aos círculos e deixar de ter medo de não encontrar a porta certa.
Mais um teste, mais um dia, a partir da noite começa o dia e posso descobrir todas as portas, eu o bosque, o homem à procura do rapaz perdido.

 

quinta-feira, 9 de julho de 2015

depois


O costume, o rame-rame do costume, trânsito, trabalho, trânsito, casa.
O que faço depois.
O que sou depois.
O depois.
Perguntam-se onde vou depois do serviço, convidam-me para tomar um copo a propósito do aniversário de alguém que nem sequer conheço muito bem, mas quem me convida tem o hábito de fazer muitas perguntas, quer saber, e já entendi que o meu depois é um mistério. Durante algum tempo, recusei delicadamente e contornei as questões. Não teve efeito. Depois comecei a responder à medida do que era esperado. Deixou-me em paz durante um tempo. Agora a táctica é aceitar, convidou-me para ir tomar um copo, vou, vamos todos, mesmo indo em celebração de quem mal conheço.
Como esta pobre mulher está enganada.
Mas por vezes tenho medo.

sábado, 4 de julho de 2015

promessa


Vou sempre parar ali, apesar de detestar o fumo, o cheiro dos corpos, apesar de no caminho até lá só pensar no que vou encontrar, o cheiro dos corpos.
A noite grande acaba sempre por ser a noite mais magra, por ser a mais consumida de tanta vontade. Esta noite nada mais tive que cheiro requentado de nicotinas passadas de boca para boca e a observação de bocas que trocaram palavras comigo na gritaria dos decibéis, não sei o que me disseram, a maior parte das vezes não percebo o que me dizem, os olhos e os invulgares gestos de tão minúsculos no seu agitar tornam-se-me tão mais bem entendíveis que quando falam não consigo traduzir o que se aproxima.
 
Bebi demasiado esta noite.
Nem tanto que não tenha percebido que quem abre a porta sou eu, que quem roda a chave no trinco é a minha mão e é esta que completa os ponteiros do dia a nascer. Prometo-me não voltar lá, especialmente depois desta noite.
Especialmente porque a minha roupa despida trouxe para o quarto o cheiro dos corpos que ficaram por lá.